Em tempos alucinantes como os atuais, a leitura de livros de alta qualidade pode ser uma forma peculiar de vitamina. O que recomendar, então, dos lançamentos? Um clássico universal. Nenhum remédio melhor do que uma tradução iluminada e iluminista da história do rei louco. Ou que apenas foi abatido pela vaidade, no momento justo de ser tocado pelo Alzheimer, diria alguém com generosidade e anacronismo.
Talvez para evitar a tragédia, a que ninguém interessa, exceto aos poetas. Rei Lear, de Shakespeare, trata de tudo isso e uma enorme lista de outras coisas mais. Lições de ética e de estética há no texto que não se esgota, por mais lido que seja. Quer o leitor o melhor já escrito sobre a família? Aí está. Sobre a ingratidão? O amor? Também se encontram no Lear. Agora, em nova e inovadora versão, na “voz” do poeta e professor Lawrence Flores Pereira.
No curto espaço de artigo de jornal, e não em veículo especializado, será difícil pormenorizar todas as virtudes dessa nova tradução, publicada pela Penguin/Companhia das Letras. Cabe também destacar a riqueza da introdução. Escrito pelo tradutor e pela ensaísta, professora e tradutora Kathrin Rosenfield, esse longo ensaio vale como um livro à parte. Mais do que uma explicação, tem-se aí uma viagem erudita, de contextualização da obra, do autor e do seu tempo.
Quanto ao texto da peça, consegue o tradutor uma série de proezas. A primeira é não cair na tentação “clássica” de tentar reclassicizar Shakespeare. Ou seja, traduzi-lo como um poeta brasileiro do século 17, com a linguagem, o vocabulário e os trejeitos da época. Também evita o oposto: abrasileirar Shakespeare como se fosse um contemporâneo, com as gírias típicas.
A medida adequada entre a precisão do escrito e a flexibilidade do oral é algo que está bem nítido no Rei Lear de Lawrence Flores Pereira. Tão coloquiais e naturais preferiu o tradutor as “falas” dos personagens que não se preocupou em nada com as acidentais rimas, assonâncias e cacofonias. Estas são exigências da palavra escrita, não da falada, que responde e correspondente a outros critérios e valores. Um exemplo:
“Para, num teste, saber qual de minhas filhas me ama mais”. Este “me ama mais” está em harmonia com o “minhas”, numa elocução toda de intimidade, quase de murmúrio materno, embora seja dita a frase por um homem. Outro exemplo, desta vez de Gloucester: “As qualidades estão tão balanceadas que nenhuma das partes pode estimar quanto caberá a cada um”.
Aí tem-se o “estão tão”. Há quem amaldiçoe o “ão” do português. Num livro de Lobato, um personagem se refere ao “ão” como se fosse um tiro, ou um latido de cachorro bravo. A fala brasileira, no entanto, suavizou, amaciou e tornou mais doce até o “ão”, para dizê-lo à maneira de Gilberto Freyre. No Shakespeare de Lawrence o “ão” e outras tipicidades aparecem de maneira natural e conforme a língua do dia a dia.
Como os nobres reais e da peça, a linguagem oscila entre o pedestre e o solene.
Como se nota neste diálogo:
Kent: Esse é o seu filho, senhor?
Gloucester: Senhor, sua criação esteve ao meu encargo. Eu já corei tanto por ter de reconhecê-lo que até perdi o pejo.
Kent: Não consigo conceber…
Gloucester: Senhor, a mãe do rapaz conseguiu. E logo embarrigou e, realmente, já estava com um filho no berço antes de ter um marido na cama. O senhor farejou alguma falta aqui?
Note-se a equilibrada escolha. Numa, ao invés de um termo mais pedestre, como “vergonha”, prefere-se “pejo”. O sentido se enriquece com sutileza, pois, no seu sentido arcaico, pejo significa algo que atrapalha, um obstáculo. Isso contribui para a riqueza semântica. No segundo caso, no lugar de “engravidar”, tem-se “embarrigou”, o que torna mais vivo, carnal, físico. Outra frase em que o tradutor alcança a fórmula certa para a malícia de Shakespeare em português é no jogo de palavras que há em “conceber”. Lawrence Flores Pereira não traduz para literatos, e sim para o teatro, o cotidiano. É Shakespeare do aqui e do agora. Faz da prosa uma real prosa (conversa).
Quanto ao verso, aí está a maior virtude da tradução. A de manter a fluidez, o calor, o ar da vida, como se não houvesse métrica, e sem perder nenhuma sílaba de poesia. O discurso inicial das filhas do rei tem uma “sonoridade” especial, e um “sabor” que remete ao mito, ao folclore, aos antigos romances. No caso de Cordélia, vê-se que a simples palavra “nada” não tem nada de simples, porque o seu sentido extrapola a palavra e, ao mesmo tempo, lhe é anterior.
O tradutor parece consciente de cada pormenor técnico. Inclusive quando constrói as assonâncias nas falas do Bobo. Numa delas, timbrando “titio”, “tio” e “contigo”, e orquestrando “raposa”, “mandona”, “forca”, “corda”, “borra”. Há efeitos desse tipo ao longo de toda a peça. Traduzida com riqueza verbal, sem verbalismos. E sem o ressaibo parnasiano. E sem pirotecnias. Se há uma seiva de intemporalidade no autor, conseguiu trazê-la para o Brasil o tradutor neste seu Lear. Tão erudito para fartar o mais faminto e exigente dos especialistas. Do começo ao fim. Da introdução às notas.
Mas, principalmente, com poesia, sem a qual a vida vale menos.
Mario Helio
Diretor de Memória,Educação, Cultura e Arte da Fundaj
Fonte: Diário de Pernambuco
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