A maneira correta de substituir presidentes é a eleição livre; dos cinco presidentes eleitos neste país por eleições diretas nos últimos 30 anos, dois foram depostos, Collor e Dilma
Por J.R. Guzzo
Veio, enfim, o maior teste de força popular que o presidente Jair Bolsonaro já teve desde que assumiu o governo, dois anos e meio atrás – e o presidente, à vista de todos, saiu ganhando. O povo foi em massa para a rua em seu apoio e contra os seus inimigos, apesar do imenso esforço feito pelas autoridades locais, pela mídia e pelas “instituições” para que não fosse. (Chegaram a dizer que “grupos armados” de bolsonaristas iriam atirar na multidão, e que haveria um “cadáver”; não se esclareceu por que diabo fariam uma coisa dessas, mas a ameaça foi feita e levada a sério pelos grandes meios de comunicação.) Não adiantou nada. A Avenida Paulista, símbolo da praça pública no Brasil de hoje, lotou – como lotaram a Esplanada dos Ministérios, a praia de Copacabana e centenas de outros lugares pelo Brasil afora. Foram as maiores manifestações de rua que o país já teve desde o “Fora Dilma” de 2016.
Isto dito, a questão que fica é: “E daí?” Bolsonaro está em guerra com o Supremo Tribunal Federal, e usou as manifestações do Sete de Setembro para dobrar a aposta. Disse, entre outras coisas, que o ministro Alexandre de Moraes deveria deixar de ser “canalha”; também disse que o ministro deveria “se enquadrar” ou, então, “pedir para sair”. Moraes e o STF, do seu lado, continuam numa atividade frenética e diária contra Bolsonaro – prendendo gente, bloqueando contas, mandando depor na polícia, e por aí afora. O que muda nessa guerra, então, depois que a multidão foi para a rua? Para Bolsonaro, muda uma coisa fundamental: o impeachment, única forma indiscutivelmente legal de tirá-lo da presidência, ficou muito mais difícil do que já era. É a velha história: rua cheia, impeachment vazio. Já era muito difícil, antes do Sete de Setembro, reunir no Congresso os votos necessários para aprovar o impeachment; agora, com centenas de milhares de pessoas manifestando seu apoio a Bolsonaro em praça pública, ficou mais difícil ainda. Para o STF, vai ser preciso concentrar a energia numa estratégia de jogar todas as suas fichas no tapetão dos tribunais superiores; ou se derruba o homem ali, e todo mundo aceita quieto, ou ele continua no governo.
O povo esteve na rua, sem dúvida – e a queda de popularidade de Bolsonaro, que vem sendo anunciada com tanta esperança pelos institutos de pesquisa, foi desmentida em seu primeiro teste diante da realidade. É certo, igualmente, que as tentativas da esquerda de concorrer no dia Sete com Bolsonaro foram um fracasso miserável de público. Também fica com uma fratura exposta o imenso esforço da mídia para dizer que as manifestações foram antidemocráticas. Como assim, “antidemocráticas”, se a população exerceu o seu direito de se expressar em público – por sua livre e espontânea vontade, com bandeiras do Brasil e com crianças, sem ônibus das prefeituras, sem lanche, sem qualquer violência, sem uma única vidraça quebrada? Tudo bem, mas o povo na rua não vai fazer com que o ministro Moraes se “enquadre”, e muito menos que peça para sair; não vai fazer o STF menos hostil a Bolsonaro em suas decisões, nem levar ao arquivamento do inquérito (este sim, ilegal e antidemocrático) conduzido pelo ministro Moraes. O STF, com a massa na Paulista e tudo, sente que tem a força da inércia a seu favor; parece determinado a levar adiante a guerra.
Continua exatamente do mesmo tamanho, assim, o único problema de verdade que existe hoje na política brasileira. Esqueça a discurseira neurastênica que aparece dia e noite, em tempo real, em todo o noticiário – anunciando calamidades imaginárias, golpes de Estado que ninguém vai dar e “ameaças à democracia” descobertas debaixo de cada cama pelo ministro Alexandre Moraes e por seus colegas do STF, que funciona cada vez mais, nestes dias, como uma delegacia de polícia. O problema que está realmente causando toda essa desordem é, muito simplesmente, o presidente Jair Bolsonaro – ou, numa tradução mais direta, o fato de que o atual presidente da República foi eleito em eleições limpas com quase 58 milhões de votos, tem chances objetivas de se reeleger para mais quatro anos e não é aceito, de jeito nenhum, pelo Brasil que manda na política nacional, nas decisões públicas e na máquina do Estado.
Bolsonaro, para esse Brasil, nunca poderia ter sido candidato à presidência em 2018. Tendo sido candidato, não poderia nunca ter ganhado a eleição – mesmo porque não tinha partido, dispunha de tempo zero na televisão e foi excomungado desde o primeiro minuto pela mídia, pelas elites e pelas classes intelectuais do Brasil e do mundo. Tendo ganhado, não poderia nunca ter tomado posse. Tendo tomado posse, não poderia nunca governar. O diabo é que foi acontecendo tudo isso, já se passaram dois anos e meio e ele continua presidente. Pior que tudo, para quem não admite a sua existência na vida política brasileira: pelo que se sabe, Bolsonaro quer continuar sendo presidente do Brasil e conta, para isso, com a reeleição, através das próximas eleições diretas, livres e constitucionais, com voto eletrônico e tudo. Fazer o quê?
É uma sinuca de bico. Esse Brasil que quer Bolsonaro fora do Palácio do Planalto, com ou sem a Paulista lotada, não admite um dos mandamentos mais elementares da democracia: para tirar o presidente que você condena, é preciso derrotar sua candidatura na primeira eleição disponível, caso ele seja candidato, e esperar até o último dia do seu mandato para colocar um outro no lugar. Se ele não for candidato, vai ser indispensável, da mesma forma, aguardar o dia 1º. de janeiro de 2023 – antes disso, e fora um dificílimo processo de impeachment, não há o que se possa fazer, a não ser virando a mesa. Eis aí a questão real: virar ou não virar a mesa. O clima entre os exércitos anti-Bolsonaro, no momento, é cada vez mais agressivo. A frase mais repetida, ali, é a seguinte: “Não dá para esperar a eleição”. É muito usada, também, a sua irmã-gêmea: “O país não aguenta até lá”. Se não querem que o homem fique até o fim do seu mandato legal, imagine-se, então, o pesadelo que estão tendo com a possibilidade de um segundo mandato de quatro anos; seria, na sua maneira de ver o Brasil, pura e simplesmente intolerável. Sendo assim, “não pode” acontecer.
Nunca ocorre a nenhum deles que “a coisa” a fazer é seguir a Constituição
Conclusão, entre as lideranças do Brasil que manda e os seus fiéis: não é possível correr o risco de que Bolsonaro ganhe as eleições de 2022. Como se resolve um embrulho desses? A maneira mais direta, eficiente e garantida é dar um jeito, qualquer jeito, de não deixar que o presidente seja candidato. É esse o começo, o meio e o fim do problema que existe na base de toda a agitação política de hoje. A eleição presidencial não pode ser suspensa por uma liminar do STF, nem por um embargo-de-qualquer-coisa apresentado pelo PT-Psol-etc. – ou, pelo menos, ninguém está propondo algo assim até agora. Nesse caso, é simples: se tem eleição, não pode ter Bolsonaro. É o que se diz todos os dias, hoje, na confederação nacional antibolsonarista. Não com essas palavras, é claro – afinal, o catecismo mais repetido ali dentro, e dali para fora, é que a democracia está acima de tudo. Mas para haver democracia no Brasil é indispensável eliminar o presidente que foi eleito, dizem eles. A democracia tem de estar acima da democracia, entende? Se não entendeu, tente o seguinte: a democracia é tão importante, mas tão importante, que em certas horas é preciso ignorar as regras democráticas para garantir a sua sobrevivência. Afinal, não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos, não é mesmo? Não se pode levar tudo a ferro e fogo, na letra exata da lei, não é mesmo? Etc. etc. etc. O pensamento é esse, e nenhum outro.
Tags: Artigos, Bolsonaro, JR Guzzo
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