O comportamento epidemiológico e fisiopatológico do novo coronavírus surpreendeu o mundo e deixou a medicina desnorteada e perdida. No Brasil, o “esforço de guerra” dos governos no seu enfrentamento decerto logrou êxito em mitigar seus efeitos, mas não evitou um imenso impacto no desempenho e nas estruturas dos sistemas de saúde, sobretudo do setor público. Em artigo publicado nesta coluna, no início da crise, intitulado O que vai matar mais: o vírus ou o isolamento?, chamamos a atenção para as graves consequências da interrupção imposta pelo isolamento horizontal na assistência aos portadores de outras doenças. Para os milhares de brasileiros, por exemplo, com tumores malignos iniciais, que perderiam a chance da cirurgia curativa. Para os muitos outros com diabetes, cardiopatias e cirroses que iriam descompensar e morrer por falta de cuidados. Advertimos então que, se a espera por cirurgia de vesícula, de próstata ou ortopédica pós-trauma já era, em média, superior a um ano, no SUS, como ficaria doravante? Esses milhões de brasileiros estão abandonados e sofrendo muito, em completo silêncio. E não têm quem os represente nas discussões, focadas pela mídia hegemônica quase exclusivamente na atenção à Covid.
No que tange à atividade mais próxima de mim – a transplantação de órgãos -, o retrocesso também foi imenso. Estávamos realizando mais de dez transplantes de fígado por mês antes da pandemia, no Recife e em João Pessoa, e caímos para apenas quatro ao mês. Em consequência, aumentou muito a mortalidade em lista.
Por tudo isso, é chegada a hora e a vez de se repensar a assistência à saúde da população, à luz da nova realidade. O momento é favorável, pois as pessoas se tornaram mais inventivas e solidárias. Começando, talvez, por criar uma força-tarefa para fazer frente à grande demanda reprimida de doentes desassistidos, por meio de mutirões de atendimentos ambulatoriais e cirurgias.
Por outro lado, há de se reconhecer certo legado positivo deixado pela pandemia, a ser aproveitado: os nossos profissionais de saúde saem da crise mais preparados, muito bem treinados que foram pela Covid, um modelo desafiador e riquíssimo para o aprendizado das ciências da saúde; os milhares de leitos de terapia intensiva criados, – antes insuficientes para atender às necessidades da população -, hoje já sobram em vários estados, e não deveriam ser totalmente desativados.
Finalmente, quando olhamos para a História da Humanidade, notamos que as sociedades mais avançadas, mais cidadãs, são aquelas que passaram por guerras devastadoras. Quem sabe, a Covid não terá sido a nossa guerra?! Quem sabe a nossa gente não dê um passo largo adiante, no sentido de tornar-se uma nação mais consciente das suas potencialidades, dos seus deveres e direitos, mais cooperativa e mais solidária, privilegiando a vida e, por consequência, a assistência à saúde de qualidade.
Fonte: Diário de Pernambuco
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