Neste 21/6 que marca os 50 anos da conquista do Tri no México, o L! relembra a coluna do jornalista e escritor Ruy Castro para o livro ‘Brasil de Todas as Copas’ lançado em 2006
Neste dia 21 de junho de 2020 celebramos exatos 50 anos da conquista do tricampeonato mundial da Seleção Brasileira, já que 21/6/70 goleou a Itália por 4 a 1 e, definitivamente, trouxe para o nosso país a Taça Jules Rimet. Para celebrar a data, o L! fez uma série de especiais, como o vídeo Diário L! Copa do Mundo de 1970 e entrevistas com protagonistas daquela conquista, como Gérson, Clodoaldo, Dadá Maravilha, entre outros. Cada partida tem a sua crônica e ficha disponibilizadas, assim como o podcast “Brasil 70: The Dream Team”, com a presença de José Inácio Werneck (que cobriu a Copa de 70 para o Jornal do Brasil!)”, Luiz Augusto Veloso e Roby Porto.
“20 DIAS DE PAIXÃO”, por Ruy Castro*
“Éramos 90 milhões em ação na Copa de 1970. Hoje somos o dobro, mas demos conta do recado em matéria de zorra e carnaval. E não foi somente no jogo final. A partir do momento em que Pelé chutou do meio de campo contra o gol vazio da Tchecoslováquia, e o goleiro Viktor, adiantado, saiu caçando borboletas em câmera lenta e se estabacando contra a trave (a bola, perversa, passou rente), começamos a perceber que ia dar pé. Era apenas a primeira partida e, por causa do contundente 4 X 1, já houve um ensaio de carreata. Se fosse uma cena de amor entre um homem e uma mulher, equivaleria a um beijo furtivo, meio roubado, com medo de que houvesse alguém olhando.
Mas, quatro dias depois, contra a Inglaterra, a paixão escancarou-se. Povo e Seleção foram para a cama e não quiseram nem saber. Quando Tostão desmontou meia dúzia de beques e passou a Pelé, que deu de bandeja para Jairzinho marcar, todos gozamos juntos – foi ali que se inventou o orgasmo coletivo. E dali para frente, em todos os jogos, foi carnaval de quatro em quatro dias.
Foi a primeira Copa com televisão ao vivo. Sabíamos que a transmissão era em cores, mas, por aqui, ainda estávamos no preto e branco. Não tinha importância: a Seleção fornecia as cores. Com Pelé, Gérson, Tostão, Rivellino, Jairzinho, Carlos Alberto e Clodoaldo em cena, podíamos ver o amarelo das camisas, o verde do gramado, o azul do céu mexicano. Os mais sensíveis tiravam o som da tevê, porque não era mole aturar o locutor Geraldo José de Almeida (“Que que é isso, minha gente?) por mais de 15 minutos, e sintonizavam em Waldir Amaral, na rádio Globo, ou Jorge Curi, na rádio Nacional.
Era engraçado ouvir os comentários de João Saldanha pela Globo – ele, que fora alijado do comando da seleção dois meses antes da Copa e substituído por Zagallo (então, ainda com um L só). O magoado Saldanha tinha tudo para se deixar trair, mas se segurava. Poucos meses antes, ninguém apostaria um cruzeiro na campanha do Brasil. Saldanha, que armara um time de feras e esmagara todo mundo nas eliminatórias (seis jogos, seis vitórias, 23 gols a favor e dois contra), começara, de repente, a complicar-se. O time atuou mal em alguns amistosos, Gérson foi acusado de não ter “espírito de seleção”, Tostão teve um descolamento de retina e, como se não bastasse, Saldanha anunciou que Pelé estava ficando cego!
O vexame brasileiro na Copa de 1966 ameaçava repetir-se em 1970. Saldanha foi demitido, o inexperiente Zagallo assumiu e, sob descrédito geral, da torcida e da imprensa, o time tomou o avião. “Embarcou a Seleção. Terminou o seu exílio”, escreveu Nelson Rodrigues, o único a acreditar que o Brasil poria na roda o feroz “futebol-força” dos europeus. E não é que isso aconteceu?
O chute de Pelé contra a meta da Tchecoslováquia foi a senha. Como ele poderia estar enxergando mal se de dentro do grande círculo quase acertara o gol? Tostão, com um olho inchado e horroroso, de filme B de terror, inventava a arte de “jogar sem bola”. Gérson, com um lançamento, punha a bola na medalhinha de Jairzinho. Parafraseando Washington Rodrigues, naquele time só o goleiro Félix e os zagueiros Brito e Everaldo eram bons. Os outros eram de craques para cima, com dois ou três gênios e um reserva de luxo: Paulo César.
Há uma diferença entre uma seleção vitoriosa e uma seleção amada – e vitoriosa. A de 70 foi amada como nenhuma outra, mesmo porque tivemos tempo para isso. Do dia 3 de junho, o da estreia na Copa, ao dia 23, o da chegada triunfal com o caneco no Galeão, tivemos 20 dias de paixão. Íamos dormir e sonhávamos com “Pra frente, Brasil”, a marcha de Miguel Gustavo que se tornara a trilha sonora de todos nós.
E a paixão era freneticamente correspondida, porque em nenhum momento a Seleção nos deixou na mão.
Em 1970, eu trabalhava no Correio da Manhã. Na véspera da final contra a Itália, correu um bolo na redação. O prêmio era uma caixa de escocês. Marquei Brasil 3 a 1, porque era o palpite menos apostado – eu próprio achava que ia ser demais. Aos 41 do segundo tempo, o placar acusava Brasil 3 a 1 e eu era o feliz ganhador de pelo menos meia dúzia de garrafas. Foi então que Pelé rolou a bola para Carlos Alberto, que estava invadindo a área, e, antes que este disparasse, vi minhas ampolas batendo asas. Fechei os olhos. “Barbante-ball!!!”, gritou o poeta e crítico José Lino Grünewald. Era 4 a 1, era o tri e, lá fora, já era de novo o país do Carnaval. Ah, sim, vivíamos na ditadura. O ditador de plantão chamava-se Médici e o clima político estava um horror. Em plena Copa rolavam atentados, prisões, torturas e o embaixador alemão acabara de ser sequestrado. Mas, quando o Brasil entrava em campo, todo mundo – guerrilheiros, torturadores e o próprio embaixador no cativeiro – parava para ouvir e vibrar. Era um só coração”.
Lance e Ruy Castro.
Tags: Brasil, Esportes, pele, Ruy Castro, seleçãobrasileira, Tri no México
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