Miguel era uma criança de cinco anos. O único filho de pais, que apesar de separados, exerciam adequadamente a função parental, nutrindo-o com o suporte material e afetivo necessário ao seu desenvolvimento físico, psíquico e social.
Numa casa de médio padrão construtivo em um bairro periférico da cidade do Recife, a criança vivia num ambiente seguro e era feliz com a mãe e a avó materna. Passava os finais de semana na companhia do pai, que o levava ao pequeno sítio em que morava para brincar com garrotes, galinhas e outros animais da roça. Dentro das possibilidades da família trabalhadora, tudo era pensado e realizado da melhor maneira possível para este filho e neto, tão amado por todos que com ele conviviam.
Empregada doméstica em casa de família num condomínio de luxo, a mãe iniciava sua jornada de trabalho cedo. E como em período de quarentena, as escolas não estavam funcionando, Miguel foi acordado para ir com ela ao seu trabalho, pois desde bem pequeno, era acostumado a brincar com as crianças, filhos dos patrões e a explorar um mundo bem diferente do seu.
Mas neste dia, foi diferente. No intervalo das tarefas domésticas, a empregada desceu com a cachorrinha da família, deixando Miguel, por um breve tempo, aos cuidados da patroa. Poucos minutos seriam suficientes para um desfecho trágico. Miguel é deixado pela mulher sozinho dentro do elevador, onde desce no 9º andar e acaba caindo de uma proteção da laje técnica, espécie de varanda que serve para abrigar condensadores de ar condicionado do pavimento predial.
Só depois, as câmeras de segurança mostram o descaso e a imprudência que a patroa, de nível socioeconômico elevado, possivelmente escolarizada, mãe e esposa de homem público, trata Miguel, empurrando-o praticamente para a morte.
Irresponsabilidade que juridicamente se enquadra em abandono de incapaz e homicídio culposo (sem intenção de matar?!).
Segundo Piaget, teórico que analisa o desenvolvimento cognitivo e estabelece etapas de aquisição para as ações de inteligência, uma criança nesta idade cronológica pertence ao subestágio pré-operacional intuitivo e, ainda está desenvolvendo o pensamento e o planejamento mental. O egocentrismo intelectual, característico desta fase do desenvolvimento e o incremento da atividade motora colaboraram também para a não antecipação da ação, não sendo possível a elaboração do pensamento lógico concreto.
Ou seja, a criança não deveria ter sido deixada sozinha, já que ainda não representa a realidade de forma exata.
Faltou o cuidado. Faltou a atitude que deriva da natureza do humano. Para Leonardo Boff, o cuidado é o sentido relacional da vida. Será que a patroa sabe que o cuidado é tarefa nunca acabada?! Será que consegue imaginar que o cuidado é princípio de precaução e prevenção? Ao viver o cuidado, o ser humano vai mostrando sua real natureza e seu modo de ser e de habitar o mundo com os outros. O cuidado é uma forma de amar. É preciso cuidar do outro para se humanizar.
Yvana Coutinho de Oliveira
Terapeuta ocupacional, pedagoga e arquiteta
Publicado em: 01/07/2020 03:00 Atualizado em: 01/07/2020 06:19
Fonte: Diário de Pernambuco
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